Há cinco anos em Portugal, a dentista Dra. Letícia Cordeiro aponta os prós e contras de um mercado que atraiu muitos profissionais da área no início da década de 90, mas que hoje se mostra muito mais seletivo e fechado.
Segundo dados do Conselho Federal de Odontologia (CFO), o Brasil possui 225 mil cirurgiões-dentistas. O universo brasileiro corresponde a mais de 11% da fatia global desses profissionais e equivale ao total de dentistas dos EUA e do Canadá juntos.
Com isso, o número de dentistas é três vezes maior do que o que se considera o ideal no País. Essa realidade faz com que muitos profissionais busquem novas frentes de trabalho até mesmo em outros países.
Um dos mercados escolhidos por grande parte dos dentistas tem sido o de Portugal. Graças a um acordo que havia entre Portugal e o Brasil, estabelecendo a equivalência direta entre todos os diplomas universitários dos dois países, muitos profissionais se mudaram para a nação lusitana, principalmente a partir da década de 90, e começaram a exercer a profissão por lá.
A dentista Dra. Letícia Reis de Oliveira Ferreira Cordeiro, formada em 2002 pela Universidade Federal de Uberlândia (MG), mora e trabalha em Portugal desde 2004. Entretanto, a oportunidade de viver e atuar em outro país surgiu devido à atividade profissional de seu marido, que é português, e viajava constantemente a trabalho.
“Decidimos nos estabelecer em Lisboa por acreditarmos que esta seria a melhor opção. Temos família morando no país e o escritório da empresa de meu marido também se localiza na cidade”, explica a dentista.
Na ocasião, Dra. Letícia, que já tinha especialização em tratamentos para pacientes com necessidades especiais pela Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas, trabalhava na Prefeitura Municipal de Uberlândia e mantinha seu consultório particular.
Já em Lisboa, a brasileira fez especialização em implante e em prótese sobre implante na faculdade EGAS MONIZ e, hoje, trabalha em uma clínica low cost – no Brasil comumente conhecida como clínica popular. Segundo Dra. Letícia, é um conceito de serviço que permite ao profissional praticar a odontologia a custos mais baixos e com qualidade, possibilitando a uma parcela da população, que, normalmente, não dispunha de condições financeiras para realizar tratamentos odontológicos mais caros, o acesso a esses serviços.
Mercado fechado
Geralmente, a rotina da brasileira começa cedo. Ela inicia seu dia de trabalho às 9h00, encerrando expediente por volta das 20h00, de segunda à sexta-feira. O consultório em que ela trabalha pertence a um outro colega brasileiro, que já reside em Portugal há dez anos e foi um dos pioneiros a levar para aquele país o conceito de clínicas populares. O negócio prosperou e hoje ele já conta com mais de dez clínicas espalhadas pela grande Lisboa.
“O mercado de odontologia em Portugal é razoável, mas já foi melhor. Antes de nós, os brasileiros, chegarmos cobravam-se consultas e os preços eram mais altos. Além disso, o sistema de saúde público não cobre serviços odontológicos. Se bem que, neste ano, graças aos esforços da Ordem dos Médicos Dentistas, conseguimos algumas vitórias, como a criação do cheque-dentista. Na verdade, por aqui ainda estamos engatinhando em relação ao Brasil”, revela.
Segundo ela, a forte imigração dos dentistas brasileiros em Portugal provocou mudanças na área naquele país. Com a entrada desses profissionais, que começaram reduzindo preços de procedimentos e a não cobrar por consultas, mas somente pelo serviço realizado, houve uma reação por parte dos dentistas e clínicas portugueses que passaram a não respeitar o acordo para equivalência dos diplomas entre os dois países, dificultando o exercício da profissão para os brasileiros.
“A Ordem é protecionista e corporativista. Assim, para legalizarmos o diploma, encontramos muitas barreiras, desde econômicas até discriminatórias. Aqui, para o profissional legalizar o seu diploma, só existem duas formas: por meio de uma prova anual, realizada nas faculdades públicas (Lisboa, Coimbra e Porto), na qual é praticamente impossível ser aprovado, ou por meio da equivalência do diploma obtida junto a uma faculdade. Mas para isso, o dentista tem de voltar aos bancos da escola, cursar algumas matérias que eles consideram necessárias para complementar o seu conteúdo programático, que foi o meu caso. Muitas vezes, o profissional precisa de um a três anos de estudos, tendo despesas altíssimas, para somente assim obter um diploma de mestrado em medicina dentária, que é reconhecido em toda a Europa”, explica.
Assim como o diploma, cursos de especialização realizados no Brasil também não têm nenhum valor em Portugal. “Por aqui, até há bem pouco tempo não existiam especialidades. Agora que se começa a segmentar os procedimentos. Mas só são reconhecidas as especializações realizadas em Portugal ou em outros países da Europa”, frisa.
A contrapartida é que a informalidade e a prática ilegal da profissão são duramente combatidas no mercado português. Segundo Dra. Letícia, há uma forte fiscalização na área, e trabalhar ilegalmente é crime previsto em lei com pena de detenção.
Mudança de hábitos
A maior competitividade do mercado de odontologia português em função da chegada de novos profissionais, entre outros fatores, também contribuiu para uma mudança cultural na população, segundo informou Dra.Letícia.
“As pessoas não tinham muita motivação para cuidar dos dentes. Mas isso começou a mudar nos últimos anos, em função de diversos aspectos, como a influência das telenovelas brasileiras, entrada de novas marcas e maior publicidade de cremes dentais, abertura de novos cursos de odontologia, atuação mais forte da Ordem dos Médicos Dentistas, além da prática de preços mais acessíveis”, acrescenta.
Em relação ao perfil dos pacientes, a brasileira conta que o nível de exigência dos pacientes portugueses é menor em relação ao dos clientes brasileiros. A maioria somente procura o dentista quando sente dor ou quando tem um problema pontual. A visita periódica como medida de prevenção não faz parte da cultura das pessoas.
“Ainda precisamos avançar muito, mostrando que os cuidados com os dentes fazem parte da promoção da saúde. Com a geração mais nova, começamos a ver uma mudança de consciência e exigência. A maior parte da população ainda prefere comprar um carro novo ou fazer uma viagem a cuidar da saúde bucal. O ideal seríamos ter a mentalidade dos pacientes brasileiros com a remuneração de Portugal”, brinca.
De acordo com ela, os serviços odontológicos prestados nas clínicas portuguesas são semelhantes aos oferecidos pelas clínicas brasileiras. Em Portugal também não há planos odontológicos como ocorre no Brasil, embora já se tente implantar nessa área o sistema de convênio, mas que possui ainda muita resistência por parte dos próprios profissionais desse setor.
Em relação à remuneração, Dra. Letícia explica que em Portugal, assim como em vários outros países da Europa, existe uma cultura geral de valorização das pessoas, não só como profissionais, mas como seres humanos. “Jamais teria conquistado no Brasil o que já consegui aqui somente trabalhando como dentista. Resido na linha de Cascais e trabalho em Lisboa. Aqui se mora muito bem e o custo de vida ainda é baixo. O acesso aos bens de consumo é mais fácil para a população de um modo geral. Não há grandes disparidades sociais, sem contar a segurança, ou seja, pode-se viver tranquilamente. Tudo isso é o que me motiva a continuar em Portugal e superar a saudade que sinto de meu país”, conta Dra. Letícia.
Ao fazer um balanço de sua carreira, Dra. Letícia acredita que todos os esforços têm valido a pena. “Tenho muitos amigos que vieram em busca do ‘eldorado’ e tiveram sucesso, mas com muita luta, ética, dedicação e sofrimento. Ms há também aqueles que se frustraram. É uma questão de planejamento e de avaliar o que se quer para sua vida. Tenho outros colegas, por exemplo, que trabalharam em Portugal e, hoje, estão ganhando muitíssimo bem na Inglaterra, onde há carência de dentistas, tanto no sistema público quanto no privado. Porém, o caminho até lá é muito difícil. O mercado europeu está cada vez mais fechado. Vemos governos, como o da Itália, França e Espanha criando políticas para restringir a imigração, sem contar a solidão e a saudade que sentimos dos familiares e dos amigos que ficaram no Brasil, dos costumes, do calor, da alegria etc. Mas, apesar disso, vale sim muito a pena correr atrás de nossos sonhos”, declara.
Entrevista feita por Madalena de Almeida – Jornalista